terça-feira, 12 de outubro de 2004

O Mestre Gichin Funakoshi



Os primeiros contatos com o Karate

Gichin Funakoshi nasceu em Shuri, Okinawa, em 1868, o mesmo ano da Restauração Meiji.

Funakoshi era filho único e logo após o seu nascimento foi levado para casa dos avós maternos, onde foi educado e aprendeu poesia clássica chinesa.

Algum tempo depois, começou a frequentar a escola primária, onde conheceu outro miudo de quem ficou muito amigo. Esse miudo era filho de Yasutsune Azato, um dos maiores especialistas de Okinawa na arte do Karate, e membro de uma das mais respeitadas famílias. Assim, Funakoshi começou a receber as suas primeiras lições de Karate.

Como na época a prática de artes marciais era proibida em Okinawa, os treinos eram realizados à noite, no quintal da casa de mestre Azato. Lá, ele aprendia a socar, pontapear e mover-se conforme os métodos praticados naqueles dias. O treino era muito rigoroso.

O Mestre Azato tinha uma filosofia de treino que se chamava "Hito Kata San Nen", ou seja, "um kata em três anos". Funakoshi estudava cada kata a fundo e, só então quando autorizado pelo seu mestre, seguia para o próximo.

Enquanto praticava no quintal de Azato com outros jovens, outro gigante do Karate, mestre Itosu, amigo de Azato, aparecia e observava-os treinando kata, fazendo comentários sobre as suas técnicas. Era uma rotina dura que terminava sempre de madrugada sob a disciplina rígida do mestre Azato, do qual o melhor elogio se limitava a uma única palavra: "Bom!". Após os treinos, já quase ao amanhecer, Azato falava sobre a essência do Karate.

Após vários anos, a prática do Karate deu uma grande contribuição para a saúde de Funakoshi, que fora uma criança muito frágil e doentia. Ele gostava muito do Karate, mas como não pensava que pudesse fazer dele uma profissão, inscreveu-se e foi aceite como professor de uma escola primária em 1888, então com 21 anos, aproveitando toda a cultura adquirida desde a infância quando os seus avós lhe ensinavam os Clássicos Chineses. Esta deveria ser a sua carreira a partir de então.


O Karate começa a ser ensinado nas escolas de Okinawa

Em 1902, durante a visita de Shintaro Ogawa, que era o então inspetor escolar da prefeitura de Kagoshima, à escola de Funakoshi em Okinawa, foi feita uma demonstração de Karate.

Funakoshi impressionou bastante devido ao seu status de educador. Ogawa ficou tão entusiasmado, que escreveu um relatório ao Ministério da Educação, elogiando as virtudes da arte. Foi então que o treino de Karate passou a ser oficialmente autorizado nas escolas. Até ai, o Karate só era praticado atrás de portas fechadas, o que no entanto não significava que fosse um "segredo".

As casas em Okinawa eram muito próximas umas das outras, e tudo o que era feito numa casa era conhecido pelas casas adjacentes. Enquanto muitos autores pregam o Karate como sendo um segredo àquela época, não era exatamente isso o que se encontrava na prática. O Karate era "oficialmente" secreto.

Contra os pedidos de muitos dos mestres mais antigos de Karate, que não eram a favor da divulgação da arte, Funakoshi trouxe o Karate até o sistema público de ensino, com a ajuda de Itosu. Logo, as crianças de Okinawa estavam a aprender kata como parte das aulas de Educação Física. A redescoberta da herança étnica em Okinawa virou moda, e as aulas de Karate em Okinawa eram vistas como uma coisa legal.

Alguns anos depois, o Almirante Rokuro Yashiro assistiu a uma demonstração de kata. Essa demonstração foi feita por Funakoshi, juntamente com uma equipa composta pelos seus melhores alunos. Enquanto ele narrava, os outros executavam kata, quebravam telhas, e geralmente chegavam ao limite dos seus pequenos corpos.

Funakoshi sempre enfatizava o desenvolvimento do carácter e a disciplina nas suas narrações durante essas demonstrações. Quando ele participava, gostava de executar o kata Kanku Dai, o maior do Karate, e talvez o mais representativo. Yashiro ficou tão impressionado que ordenou aos seus homens que iniciassem a aprendizagem na arte.

Em 1912, a Primeira Esquadra Imperial da Marinha ancorou na Baía de Chujo, sob o comando do Almirante Dewa, que selecionou doze homens da sua tripulação para estudarem Karate durante uma semana.

Foi graças a esses dois oficiais da Marinha que o Karate começou a ser comentado em Tokyo. Os japoneses que viam essas demonstrações levavam consigo as histórias sobre o Karate quando voltavam ao Japão. Pela primeira vez na sua história, o Japão acharia algo na sua pequena possessão de Okinawa além de praias bonitas e ar puro.


O Karate chega ao Japão

Em 1921, o então Príncipe Herdeiro Hirohito, em viagem para a Europa, fez escala em Okinawa e assistiu a uma demonstração de Karate, liderada por Funakoshi, ficando muito impressionado. Por causa disso, no final desse mesmo ano, Funakoshi foi convidado para fazer uma demonstração de Karate em Tokyo, numa Exibição Atlética Nacional. Ele aceitou imediatamente, acreditando ser esta uma óptima oportunidade para divulgar a sua arte. A sua demonstração de kata foi um sucesso.

Funakoshi pretendia retornar logo para Okinawa mas, depois da exibição, foi cercado de pedidos para ficar no Japão a ensinar Karate.

Uma das pessoas que pediu para que ele ficasse foi Jigoro Kano, o fundador do Judo e presidente do Instituto Kodokan. Funakoshi resolveu ficar mais alguns dias para fazer demonstrações das suas técnicas no próprio Kodokan.

Algum tempo depois, quando se preparava novamente para retornar a Okinawa, foi visitado pelo pintor Hoan Kosugi, que já tinha assistido a uma demonstração de Karate em Okinawa o qual lhe pediu que lhe ensinasse a arte. Mais uma vez a sua volta foi adiada.

Funakoshi percebeu então que se ele quisesse ver o Karate propagado por todo o Japão ele mesmo teria que fazê-lo. Por isso resolveu ficar em Tokyo até que a sua missão fosse cumprida.

No Japão, Funakoshi foi ajudado por Jigoro Kano, o homem que reuniu vários estilos diferentes de Jujutsu para fundar o Judo. Kano tornou-se amigo íntimo de Funakoshi, e sem a sua ajuda nunca teria havido Karate no Japão. Kano introduziu-o às pessoas certas, levou-o às festas certas, caminhou com ele através dos círculos sociais da elite japonesa. Mais tarde naquele ano, as classes mais altas dos japoneses convenceram-se do valor do treino do Karate.

Funakoshi fundou um dojo de Karate num dormitório para estudantes de Okinawa, em Meisei Juku. Ele trabalhou como jardineiro, zelador e faxineiro para se poder alimentar enquanto, à noite, ensinava Karate.


O primeiro livro

Em 1922, a pedido do pintor Hoan Kosugi, Funakoshi publicou o seu primeiro livro: "Ryukyu Kenpo Karate", um tratado nos propósitos e prática do Karate. Na introdução daquele livro ele já dizia que "...a pena e a espada são inseparáveis como duas rodas de uma carroça".

O grande terremoto de Kanto, a 1º de setembro de 1923, destruiu as placas do seu livro e levou alguns dos seus alunos com ele. Ninguém morreu com o tremor de terra, os incêndios é que provocaram as mortes. O terremoto ocorreu durante a hora do almoço, no momento em que cada fogão a gás no Japão estava ligado. Os incêndios que ocorreram a seguir eram monstruosos e a maioria das vidas perdidas deveu-se ao fogo.

Este livro teve grande popularidade e foi revisado e reeditado quatro anos após o seu lançamento, com o título alterado para: "Rentan Goshin Karate Jutsu".

Em 1925, Funakoshi começou a ensinar alunos dos vários colégios e universidades na área Metropolitana de Tokyo e nos anos seguintes esses alunos começaram a fundar os seus próprios clubes e a ensinar Karate a estudantes dessas escolas. Como resultado, o Karate começou-se a espalhar por Tokyo. No início da década de 30, havia clubes de Karate em cada universidade de prestígio de Tokyo.

Mas, por que estava Funakoshi a conseguir tantos jovens interessados em Karate desta vez? O Japão estava a fazer uma Guerra de Colonização na Bacia do Pacífico. Eles invadiram e conquistaram a Coréia, Manchúria, China, Vietnã, Polinésia, e outras áreas. Jovens a ponto de irem para a guerra vinham a Funakoshi para aprender a lutar, assim eles poderiam sobreviver ao recrutamento nas Forças Armadas Japonesas. O seu número de alunos aumentou bastante.

Por volta de 1933, Funakoshi desenvolveu exercícios básicos para a prática das técnicas em duplas. Tanto o ataque de cinco passos (Gohon Kumite) como o de um (Ippon Kumite) foram usados.

Em 1934, um método de praticar esses ataques e defesas com colegas de um modo levemente mais irrestrito, semi-livre (Ju Ippon Kumite), foi adicionado ao treino.

Finalmente, em 1935, um estudo de métodos de luta livre (Ju Kumite) com oponentes finalmente tinha começado. Até então, todo Karate treinado em Okinawa era composto basicamente de kata. Isso era tudo. Agora, os alunos poderiam experimentar as técnicas dos kata uns com os outros sem causar danos sérios.

Neste mesmo ano de 1935, foi publicado seu próximo livro: "Karate-Do Kyohan". Este livro trata basicamente dos kata.


Uma reforma no Karate

Funakoshi era Taoísta e ensinava Clássicos Chineses, como o Tao Te Ching de Lao Tzu, enquanto vivia em Okinawa.

Funakoshi era profundamente religioso. Ele tinha muito medo de que o Karate se tornasse um instrumento de destruição, e provavelmente queria eliminar do treino algumas aplicações mortais dos kata. Então parou de fazer essas aplicações.

Também começou a desenvolver estilos de luta que fossem menos perigosos. Funakoshi teve sucesso ao remover do Karate técnicas de quebras de juntas, de ossos, dedos nos olhos, chaves de cotovelo, esmagamento de testículos, criando um novo mundo de desafios e luta em equipa onde somente umas poucas técnicas seriam legais. Fez isso baseado nos seus propósitos e com total conhecimento dos resultados.
Em 1936, Funakoshi mudou os caracteres Kanji utilizados para escrever a palavra Karate. O caracter "Kara" significava "China", e o caracter "Te" significava "Mão".

Para popularizar mais a arte no Japão, ele mudou o caracter "Kara" por outro, que significa "Vazio". De "Mãos Chinesas" o Karate passou a significar "Mãos Vazias", e como os dois caracteres são lidos exatamente da mesmaa maneira, então a pronúncia da palavra continuou a mesma.

Além disso, Funakoshi defendia que o termo "Mãos Vazias" seria o mais apropriado, pois representa, não só o fato de o Karate ser um método de defesa sem armas, mas também representa o espírito do Karate, que é esvaziar o corpo de todos os desejos e vaidades terrenos.

Com essa mudança, Funakoshi iniciou um trabalho de revisão e simplificação, que também passou pelos nomes dos kata, pois ele também acreditava que os japoneses não dariam muita atenção por qualquer coisa que tivesse a ver com o dialeto caipira (interiorano) de Okinawa. Por isso resolveu mudar, não só nome da arte, mas também os nomes dos kata.

Funakoshi tinha 71 anos em 1939, e foi a 29 de Janeiro que deu o primeiro passo dentro de um Dojo de Karate. O prédio foi feito de doações particulares e uma placa pendurada sobre a entrada dizia: "Shotokan".

"Sho" significa pinheiro. "To" significa ondas ou o som que as árvores fazem quando o vento bate nelas. "Kan" significa edificação ou salão. "Shoto" era o pseudônimo que Funakoshi usava para assinar as suas caligrafias quando jovem, pois quando ele ia escrevê-las recolhia-se num lugar mais afastado, onde pudesse buscar inspiração, ouvindo apenas o barulho do pinheiros ondulando ao vento. Esse nome, dado ao Shotokan Karate Dojo, foi uma homenagem dos seus alunos.


A Segunda Guerra Mundial

Com a eminência de uma guerra a pairar no ar, a necessidade de treinar os militares estava em crescimento. Os jovens estavam-se a amontoar nos dojos, vindos de todas as partes do Japão. O Karate foi de boleia nessa onda de militarismo e estava a desfrutar de uma aceitação acelerada como resultado.

Finalmente, no dia 7 de dezembro de 1941, o Japão comete o seu grande erro. O bombardeio das forças navais americanas em Pearl Harbor foi a gota d'água. Numa tentativa de prevenir que as embarcações americanas bloqueassem a importação japonesa de matéria-prima, os japoneses tentaram remover a frota americana e varrer a influência ocidental do próprio Oceano Pacífico.

O plano era bombardear os navios de guerra e os porta-aviões que estavam no território do Hawai. Isto deixaria a força americana no Pacífico tão fraca, que a nação iria pedir a paz para prevenir a invasão do Hawai e do Alasca.

Infelizmente, o pequeno Japão não tinha os recursos, força humana, ou a capacidade industrial dos Estados Unidos. Com uma mão nas costas, os americanos destruíram completamente os japoneses na Ásia e no Pacífico.

Uma das vítimas dos ataques aéreos foi o Shotokan Karate Dojo, que tinha sido construído em 1939. Com a América a exercer pressão em Okinawa, a esposa de Funakoshi finalmente iria deixar a ilha e juntar-se a ele em Kyushu no Sul do Japão. Ficaram lá até 1947.

Os americanos destruíram tudo que estava no seu caminho. As ilhas foram bombardeadas do ar, todas as cidades queimadas até o fim, as colinas crivadas de balas pelos cruzadores de guerra de longe da costa, e as tropas varreram através da ilha, matando toda a gente que estivesse viva. A era dourada do Karate em Okinawa tinha acabado. Todas as artes militares tinham, rapidamente, sido banidas pelas forças americanas.

Primeiro uma, depois outra bomba atômica explodiram sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Três dias depois, bombardeiros americanos sobrevoaram Tokyo em tal quantidade que chegaram a cobrir o Sol. Tokyo foi bombardeada com dispositivos incendiários.

Descobrindo que o governo do Japão estava a ponto de cometer um suicídio virtual sobre a imagem do Imperador, cartas secretas foram passadas para os japoneses, garantindo a sua segurança se eles assinassem a sua "rendição incondicional". O Japão estava acabado, a Guerra do Pacífico também, mas o pesadelo de Funakoshi ainda havia de acabar.


A morte de Yoshitaka

Foi então que Gigo, também conhecido como Yoshitaka, filho de Funakoshi, um jovem e promissor mestre de Karate no seu próprio direito, aquele que Funakoshi estava a contar para substituí-lo como instrutor do Shotokan, apanhou tuberculose em 1945 e veio a falecer enquanto, teimosamente, se recusava a comer a ração americana dada ao povo faminto.

Funakoshi e a sua esposa tentaram viver em Kyushu, uma área predominantemente rural, sob a ocupação americana no Japão mas, em 1947, ela morre, deixando Funakoshi retornar a Tokyo para reencontrar os seus alunos de Karate que ainda viviam.

Depois de a guerra ter acabado, as artes militares haviam sido completamente banidas. Entretanto, alguns dos alunos de Funakoshi tiveram sucesso em convencer as autoridades que o Karate era um desporto inofensivo. As autoridades americanas concederam, uma vez que, naquela época, não faziam a minima ideia do que era o karate. Além disso, alguns homens estavam interessados em aprender as artes militares secretas do Japão, pelo que as proibições foram eliminadas completamente em 1948.

Em maio de 1949, os alunos de Funakoshi movem-se para organizar todos os clubes de Karate, universitários e privados, numa simples organização, a que chamaram de Nihon Karate Kyokai (Associação Japonesa de Karate). Nomearam Funakoshi o seu instrutor chefe. Em 1955, um dos alunos de Funakoshi consegue arranjar um dojo para a NKK.


Uma lição para o mundo

Em 1957, Funakoshi tinha 89 anos de idade. Foi professor de escola primária e professor de Karate. Mudou-se para o Japão em 1922 e trouxe consigo o Karate, dando ao Japão algo de Okinawa com o seu próprio jeito pacifista.

No processo, perdeu um filho, a esposa, o prédio que os seus alunos tinham feito para ele, o seu lar, e qualquer esperança de uma vida pacífica. Suportou uma Guerra Mundial que resultou em calamidade nacional, e treinou os seus jovens amigos, conhecendo as suas famílias, apenas para vê-los irem lutar e serem mortos pelas forças invencíveis dos Estados Unidos.

Funakoshi viu o Japão a queimar, viu os antigos templos e santuários serem totalmente aniquilados, viu bombardeiros inegrecerem o Sol e viu como um pilar de fumo negro subia de cada cidade no Japão e envenenava o ar que respirava. Ele viu o Japão cair da glória, para uma nação miserável, dependendo de suprimentos de comida e roupas dos seus conquistadores.

O cheiro do fumo e o cheiro dos mortos, os berros daqueles que foram deixados para morrer lentamente, o choro das mães que perderam seus filhos e esposas que nunca mais iriam ver os seus maridos, o medo, o ruído ensurdecedor dos B-29's a voar sobre a sua cabeça aos milhares, os clarões como os de trovões por todo o país quando as bombas explodiam em áreas residenciais, os flashes de luz na escuridão, a espera no rádio para poder ouvir a voz do Imperador pela primeira vez, somente para anunciar a rendição, a humilhação de implorar comida aos soldados. Intermináveis funerais, famílias arruinadas e lares destruídos.

A lição mais importante que ele nos ensinou, está expressa na história do modo que ele passou pelo dojo principal de Jigoro Kano, o fundador do Judo. Caminhando pela rua, ele parou e fez uma pequena prece quando passou pelo Kodokan. E, se estivesse a conduzir um carro, ele tiraria o seu chapéu quando passasse pelo Kodokan.

Os seus alunos não entenderam porque ele estaria a rezar pelo sucesso do Judo. Ele explicou: "Eu não estou a rezar pelo Judo. Eu estou a oferecer uma prece em respeito ao espírito de Jigoro Kano. Sem ele, eu não estaria aqui hoje".

Gichin Funakoshi, o "Pai do Karate Moderno", faleceu no dia 26 de abril de 1957. No seu túmulo está gravada a sua célebre frase: "Karate Ni Sente Nashi". O monumento está localizado no Templo Engakuji na cidade de Kamakura, Japão.

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